Crônica: Capivaras

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Meu
primeiro dia na escola foi bem ruim. Hoje em dia as crianças não sabem direito
como é o primeiro dia em que a gente entra na escola. Elas começam muito
pequenas, com poucos meses estão no berçário. Isso quando conseguem vaga,
afinal, muitos berçários haviam sido fechados naquela cidade.

Imagine,
uma cidade que fecha berçários. Comigo foi diferente. Eu já era meio grande.
Tinha seis anos. Imagine. Seis anos. Quer dizer que, desde que eu nasci, até
ter seis anos, eu ficava em casa. Sem fazer nada. Brincava um pouco. Não tinha
irmãos, como nunca meus pais conseguiam vaga na “creche”, era o vovô e a vovó
quem cuidavam de mim e criei o costume de brincar sozinho. Era meio chato.

Até
que chegou o dia de entrar na escola. Minha mãe foi logo avisando.


Olha, Joãozinho. Lá na escola, não pode ficar falando palavra feia. Bunda,
cocô, xixi. Não usa essas palavras.

Tocaram
a buzina. Era a condução da escola, meus pais até que tentaram uma vaga mais
próxima de casa, mas como eu ia para uma escola “integral”, só consegui estudar
numa escola um pouco distante de casa.

Meus
pais trabalhavam o dia todo e como a vovó não podia mais ficar comigo para cuidar
do vovô que estava doente, não tinha ninguém para ficar comigo o tempo que não
estivesse na escola, e eu teria que ficar o dia todo na escola.

Eu
estava de uniforme. Calça curta azul, camisa branca.

Eu
tinha uma camisa branca que me dava sorte. Era uma com uma pintinha no
colarinho. Gostava daquela pintinha preta. Mas no primeiro dia de aula justo
essa camisa tinha ido lavar. Fui com outra. Que não dava sorte.

Bom,
daí a aula começou, não teve o recreio, chovia demais e naquela escola não
havia nem pátio coberto, nem espaços para as crianças brincarem caso chovesse,
e naquele meu primeiro dia chovia demais. Ficamos algum tempo com uma
inspetora, ela demorou a chegar, havia poucos inspetores para uma escola tão
grande. Então tocou o sinal e uma outra professora veio até a classe.

Até
que deu certo no começo, apesar de já estar cansado de ter que ficar horas e
horas sentado por causa da chuva, fiquei imaginando o que seria se chovesse o
mês todinho. Meu Deus!

Então,
a professora perguntou:


Alguém sabe qual o nome do maior roedor do mundo?

Vai
ver que ela queria perguntar: “Qual o nome daquele bicho que está nos
cartazes, atrás dos ônibus, nas propagandas por toda parte?”. O fato é que
eu sabia a resposta, e gritei:


A capivara!

A
professora me olhou muito contente. Os meus colegas também me olharam, mas não
pareciam tão contentes. Ela brincou:


Puxa, você está afiado, hein?

Eu
não respondi, mas fiquei inchado de alegria, como se fosse um capivarazinha.
Dentes afiados de roedor.

A
professora explicou alguma coisa sobre as capivaras. Falou que elas eram
gorduchinhas e simpáticas, e que essa simpatia às vezes fazia as pessoas não
verem os problemas da cidade e as coisas que aconteciam ao seu redor.

Tinha
sido um bom começo.

Mas
aí vieram os problemas.

Fui
ficando com a maior vontade de fazer xixi.

Segurei.

A
professora continuava a falar sobre as capivaras.

Assunto
mais louco para um primeiro dia de aula.

E
a vontade de fazer xixi ia aumentando.

Cruzar
as pernas não adianta nessa hora.

Olhei
para um coleguinha no banco da frente. Tive inveja dele. Ele estava ali,
tranqüilo. Sem nenhum aperto. Como é que seria estar no lugar dele? Pedir para
ser ele, pedir emprestado o corpo dele por algum tempo? Como alguém pode ficar
sem vontade de fazer xixi? Sem nem pensar no problema?

Eu
estava ficando meio desesperado. Eu era meio tímido também. Levantei a mão. A
professora perguntou o que eu queria.


Posso ir no banheiro?


Espere um pouco, tá? Só tem um banheiro funcionando e parece que já há uma fila
de crianças ali.

Ela
devia estar achando muito importante aquela história toda sobre capivaras.
Começou a explicar como as capivaras bebiam água. Que elas ficavam o dia todo
tomando banho de sol e quando tinham sede apenas ficavam um tempo mergulhadas
nos rios ou nos lagos. Falava coisas sobre capivaras com “laser´s”, capivaras e
bicicletas, capivaras no videogame. Levantei a mão de novo.


Preciso ir no banheiro, professora…

Ela
nem respondeu. Fez só um gesto com a mão. Para eu esperar mais. Na certa, ela
estava pensando que, no primeiro dia de aula, é importante não facilitar. Não
dar moleza. Devia imaginar que todo mundo inventa que quer ir ao banheiro só
para passear um pouco e não ficar ali assistindo aula. Professora mais chata.
Levantei a mão pela terceira vez. Eu realmente não agüentava mais. Só que a
professora nem precisou responder.

Tinha
tocado o sinal. Fim da aula. Era só correr até o banheiro. Levantei da
carteira. A gente era obrigado a sair em fila. Faltava pouco. Claro que não
deu. Fiz o maior xixi. Dentro da classe. Logo eu, que nunca fui de fazer
grandes xixis. Mas aquele foi fenomenal. Parecia a lagoa da capivara. Coisa de
fazer barulho no chão. Chuáá… A professora chegou perto de mim. — Você estava
apertado? Por que não me avisou? Eu não soube o que responder.

Mas
entendi algumas coisas. A coisa mais óbvia é que, quando você tem necessidade
de alguma coisa, deve lutar e insistir por ela. Coisa mais chata é ficar
pedindo para alguém dar para gente aquilo que é um direito. Banheiro é assunto
meu. Outra coisa é que as pessoas, em geral, não ligam para o que a gente está
sentindo. Para mim a vontade de fazer xixi era a coisa mais importante do
mundo. Para a professora, a coisa mais importante do mundo era ficar falando de
capivaras. É como se cada pessoa tivesse um filme dentro da cabeça. E só
prestasse atenção nesse filme. Filme das capivaras, filme do xixi. Mais uma
coisa. Quando a gente precisa muito, a gente tem de gritar para valer. Eu devia
ter gritado:


Professora, tenho de fazer xixi.

Mas
o pior é ficar levantando a mão e dizendo baixinho:


Professora, posso ir no banheiro?

Vai
ver que eu estava falando tão baixo que ela nem escutou. As pessoas nunca
escutam muito bem o que a gente diz. Talvez se as pessoas gritassem pedindo
mais banheiros, espaços para cobertos para brincar, uma escola bem cuidada, meu
primeiro dia de aula teria sido diferente.

Uma
última coisa.

Aquele
xixi não teve importância nenhuma. Eu fiquei envergonhado. Ainda mais no
primeiro dia de aula. Só que, alguns dias depois, o vexame tinha passado. Tudo
ficou normal. Tive amigos e inimigos na classe, fiz lição, respondi chamada, e
nem a professora, nem meus amigos, nem meus inimigos, ninguém se lembrou do meu
xixi. Sabe por quê? É porque já fazia duas semanas que chovia e uma das
inspetoras havia ficado doente com a falta de pessoas para ajudar, duas semanas
que nem nós alunos, nem os professores tínhamos recreio… Só eu liguei de
verdade para o caso do xixi. As outras pessoas estão sempre tratando de
assuntos mais sérios. Capivaras, por exemplo.

De João Paulo de Souza da Silva

Professor no CEI Augusto César Sandino – Doutorando em Educação UFPR

Baseado
no texto “Elefantes”, de Marcelo Coelho.

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