BRASIL DE FATO: São tantos os relatos dos problemas da saúde pública no Brasil que as denúncias que surgem cotidianamente já estão quase naturalizadas para boa parte da população. Mas e quando a má gestão do dinheiro público afeta também aqueles que mais precisam? Em Curitiba, pacientes com deficiência e seus familiares vivem uma dolorosa realidade. Problemas no atendimento odontológico para os que precisam de anestesia geral impedem que estas pessoas tenham uma vida com qualidade. Servidores municipais e pais de pacientes denunciam o descaso no atendimento do Hospital do Trabalhador (HT), gerenciado pelo governo do estado.
Conceição Aparecida da Silva, mãe de Anderson, 33 anos, reclama que o filho tem passado por um verdadeiro tormento. Segundo ela, foram aproximadamente 3 meses de espera para o atendimento dentário sob anestesia geral. Depois de chegar ao consultório do HT, no dia 6 de outubro, eles foram obrigados a esperar por 6 horas, em jejum, e por mais 2 horas, tempo que durou o tratamento odontológico. “Chegamos às 7 horas e saímos às 15 horas. O Anderson não conseguia nem levantar da maca, de fraqueza por não ter se alimentado”, conta ela.
A cirurgiã-dentista da unidade municipal de saúde Amigo Especial, Carolina Garcia, tem constatado problemas recorrentes. Segundo ela, em um de seus pacientes havia restaurações sem fazer em menos de 15 dias de diferença, desde o atendimento no HT. E esta não é a primeira vez que isso acontece com o mesmo paciente. Em fevereiro de 2012, em uma consulta após o atendimento no hospital, ela já havia verificado a ausência de restaurações necessárias em alguns dentes.
Os fatos chamam a atenção do Conselho Regional de Odontologia do Paraná (CRO). A diretora Carmem Lucia Arrata afirma que qualquer procedimento “tem que ter registro destes pacientes e não pode haver negligência. Se for constatado o problema, o que envolve é a questão ética”, diz.
A situação preocupa o representante do serviço de auditoria no Paraná, do Ministério da Saúde, Mario Lobato. Ele explica que o dinheiro do governo federal é depositado no fundo municipal de saúde e gerido de maneira autônoma pelas prefeituras. “O Ministério Público poderia acionar o estado e o município nesta situação, porque é um descumprimento. Além da terceirização ilegal, ela não está dando resultado”, reitera.
Recurso federal
Há cerca de um ano o governo federal destinou R$ 1,4 bilhões para o atendimento de deficientes em todo o Brasil. A medida faz parte do Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do Ministério da Saúde.
O convênio assinado pela Prefeitura de Curitiba em 1º de junho de 2012 permite a transferência de serviços de média e alta complexidade para o HT. O contrato tem validade por 12 meses e prevê o repasse de R$ 33 milhões por meio do Fundo Nacional de Saúde (FNS).
Segundo o Plano Operativo Anual do convênio, o hospital do estado “deve atender o paciente (com deficiência) na integralidade realizando procedimentos resolutivos e definitivos, nas áreas de dentística, periodontia, cirurgia, exodontia, com os devidos registros em prontuários”. Especifica ainda o documento que “os pacientes devem ser contra referenciados para a UMS Amigo Especial, após o atendimento”.
Os requisitos previstos para o HT, no entanto, não vêm sendo cumpridos. Segundo os dentistas do Amigo Especial, que são servidores municipais, os tratamentos não são feitos por completo. Também não há registro em prontuário, nem informações vindas do HT sobre o atendimento.
Providências só em 2013
O promotor de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência José Américo Penteado de Carvalho declarou que se “constatadas as irregularidades, providências serão tomadas”. As investigações partem das denúncias apresentadas por servidores da Prefeitura em 2010 e que também compõem parte de um inquérito civil que corre em sua promotoria.
A repercussão do fato também resultou em uma reunião emergencial da Comissão de Saúde da Pessoa com Deficiência do Conselho Municipal de Saúde de Curitiba. O que se viu, no entanto, é quase nada de prático para resolver os problemas. A poucos dias do fim do mandato de Luciano Ducci (PSB), atual prefeito, a tendência é que os familiares e deficientes só vejam mudanças a partir de 2013.
A superintendente de gestão da SMS Anna Paula Penteado garante que uma auditoria está em andamento e que as denúncias apresentadas estão sendo investigadas. Se os problemas forem constatados, ela admite que o convênio entre a Prefeitura e o Hospital do Trabalhador pode ser rompido.
Problema que se arrasta
Os problemas foram agravados quando a Prefeitura mudou o atendimento destes pacientes, antes realizado no Centro Médico Comunitário Bairro Novo. Depois de reclamações dos servidores sobre a estrutura necessária para casos de anestesia geral, os gestores suspenderam o atendimento no local, em janeiro de 2011.
O serviço só foi retomado 9 meses depois e após cobrança do Ministério Público, que promoveu uma audiência com a Prefeitura. Neste período, os pacientes permaneceram sem atendimento.
Ao tomar conhecimento dos fatos, a promotora de justiça do MP Danielle Tuoto determinou que a Prefeitura resolvesse os problemas e atendesse as solicitações dos dentistas municipais. A Secretaria Municipal de Saúde respondeu a um termo de audiência no dia 5 de maio de 2011, justificando que passaria a realizar o serviço no Hospital do Trabalhador.
Conduta contraria decisão do MPT
Uma Ação Civil Pública ganha pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) determina a proibição de terceirização de atividades- fim no HT. A decisão da juíza do trabalho Erika Silva Boquimpani exige também a contratação de servidores estaduais por meio de concurso público. O governo do estado teria 24 meses para se adequar à decisão, sob o risco de ser multado em R$ 5 mil a cada dia de descumprimento. O prazo final para adequação era 17 de dezembro de 2011.
A denúncia havia sido apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores da Saúde Pública do Paraná (Sindisaúde), em 2002. Na ocasião, o sindicado questionava a manutenção de um contrato entre a Funpar e o HT para cessão de 400 funcionários não concursados, o dobro da quantidade de concursados.
Informações da assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) dão conta de que os cirurgiões-dentistas prestam atendimento no Centro de Atendimento Integral ao Fissurado Labiopalatal (Caif). Trata-se de uma unidade da Secretaria, criada em abril de 1992. A estrutura funciona dentro do Hospital do Trabalhador.
Segundo apurado pela reportagem, João Luiz Carlini, que coordena a equipe, é professor da UFPR e prestador de serviço na Associação de Reabilitação e Promoção Social Fissurado Lábio Palatal (Afissur). A assessoria de imprensa da Sesa não soube precisar qual o vínculo dos dentistas do HT com o Estado.
Carlini não nega a terceirização do serviço. “Quanto ao convênio firmado não compete a mim discutir este ponto, pois foi solicitado o atendimento ao serviço de Cirurgia Bucomaxilofacial do Caif e estamos atendendo”, diz uma nota publicada.
Fonte: Reportagem e foto de Guilherme Carvalho de Curitiba/PR – Brasil de Fato