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Brasil de Fato: A memória diz não a Maluf

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BRASIL DE FATO: O tempo da memória política histórica é diferente da memória política eleitoral. Muitas vezes, a lembrança de fatos importantes está submetida a uma série de conveniências que nem sempre respeitam o passado. É o que vem se observando na aliança entre Fernando Haddad e o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) para as eleições municipais de São Paulo este ano. Em junho, a deputada federal Luiza Erundina desistiu de ser vice da chapa do ex-ministro, que concorre à Prefeitura da capital paulista.

A desistência de Erundina ocorreu dias depois da publicação de uma fotografia que reúne Haddad, Maluf e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A imagem foi feita no dia em que os petistas foram à casa de Maluf selar o acordo, que dará ao PT um minuto e 35 segundos a mais em seu programa eleitoral gratuito na televisão.

Um fato mais antigo, porém, e de repercussão muito maior, diferencia as trajetórias de Luiza Erundina e Paulo Maluf: o Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, na zona norte da capital paulista. Foi em 1971, na gestão de Maluf, então prefeito biônico de São Paulo, que o cemitério, destinado a indigentes, foi construído. E foi na gestão de Erundina que se revelou um dos maiores crimes da ditadura civil-militar do Brasil (1964-1985): em uma vala comum e clandestina, foram encontradas 1049 ossadas não identificadas, dentre as quais de militantes políticos assassinados pelo regime.

Embora os familiares soubessem da existência da vala desde o final da década de 1970, foi somente no mandato da ex-prefeita, e com seu apoio, que a vala pôde ser aberta, em 4 de setembro de 1990. “[O caso de Perus] envolveu as forças mais reacionárias e que participaram ativamente da repressão política na época da ditadura, que era o caso do Maluf, prefeito da cidade”, recorda a deputada. A contribuição de Erundina foi além. Ela apoiou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo para investigar o crime. Passados mais de 20 anos, Erundina ainda considera a abertura da vala um acontecimento fundamental para a memória política de São Paulo.

Com um fato dessa magnitude associado a sua gestão, a deputada admite que o envolvimento de Maluf com a ditadura influenciou sua decisão de abandonar a chapa com Fernando Haddad, mas lembra que os problemas vão muito além disso. “Não foi só por aquela foto, do Lula na casa dele. Claro que aquilo me feriu. Mas não foi só isso”, assegura a deputada. “É a historia da Maluf, o seu papel na repressão política na época da ditadura e o seu desrespeito à ética, à moralidade e ao interesse público. Por tudo isso eu não sinto condição e nem vontade alguma de ficar junto desse cara em qualquer processo, e não seria agora”, afirma.

O lugar de Erundina na chapa foi assumido por Nádia Campeão (PCdoB) .Logo após a renúncia, a deputada confirmou que apoiará Haddad nas eleições. Entretanto, a ex-prefeita não deixa de criticar o acordo com Maluf. “Não dá para achar que, em nome de uma disputa eleitoral e conjuntural, a gente se encontre e conviva com ele [Maluf] quando tivemos, a vida toda, uma posição de oposição, resistência e antagonismo com essa fi gura do Paulo Maluf”, afirma.

 

Desconforto

A aliança não incomodou apenas a ex-prefeita. No próprio partido houve discordância, como demonstra o vereador Ítalo Cardoso (PT-SP). “Nós não podemos ficar reféns de um tempo na TV. Felizmente, houve uma reação por parte da população, que gerou um certo desconforto para o Paulo Maluf e também para algumas pessoas que achavam que não teria tanta importância. Tem importância sim”, garante. “A perda foi maior do que os 90 segundos que nós ganhamos”, conclui o vereador.

A aliança entre Fernando Haddad e Paulo Maluf ocorre no mesmo ano em que se iniciam os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que vem sendo considerada um marco para movimentos em defesa dos direitos humanos e familiares de vítimas da ditadura civil-militar.

Ítalo Cardoso é presidente da Comissão Municipal da Verdade, uma das várias comissões locais criadas para auxiliar o trabalho da nacional. E o tema de sua primeira reunião, em 21 de junho, foi justamente o caso do cemitério de Perus. Segundo o vereador, durante o encontro foram apresentados os resultados da CPI na década de 1990.

Segundo ele, os trabalhos já realizados ajudarão a entender o que se passou em Perus, considerado, por ele, um dos casos mais elucidados até o momento. “O caso de Perus é um dos mais esclarecidos, já demos um passo, localizamos a vala. Mas ainda é presente, para mim, a necessidade de responsabilizar as pessoas”, diz.

Em 2009, o Ministério Público federal entrou com uma ação civil pública (veja matéria ao lado) contra cinco autoridades – dentre elas Paulo Maluf – acusadas de ocultação de cadáver, depois da constatação de que foram feitas manobras para prejudicar a localização dos corpos.

Para o ex-preso político e membro da Comissão de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos, Ivan Seixas, o que ocorreu em Perus não é menos grave e, portanto, precisa analisado com atenção. “O caso específico das ossadas de Perus foi um serviço complementar às torturas, aos laudos falsos, não foi uma coisa que seja separada. E o Maluf foi uma peça fundamental”, destaca.

Um longo processo

Desde a abertura da vala, em 1990, as famílias vivem um longo processo para identificar seus entes. A espera da família de Flávio de Carvalho Molina durou 34 anos. Militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e depois do Movimento de Libertação Popular (Molipo), Flávio foi preso e, dias depois, em 7 de novembro de 1971, morto nas dependências do Dops, em São Paulo. Seus familiares, no Rio de Janeiro, ficaram sabendo de sua morte por meio de nota em jornais, que o tratavam com seu nome falso, Álvaro Lopes Peralta. Ao questionarem o fato junto a autoridades, receberam um ofício, assinado pelo então diretor geral do Dops, Romeu Tuma, confirmando que Flávio havia morrido em um “tiroteio”. Foram anexados alguns documentos, que traziam a versão dos militares. “Para poder formalizar uma história oficial ainda deram três tiros nele”, conta seu irmão, Gilberto Molina.

Em 1979, a família encontrou o nome de Álvaro Lopes Peralta no livro de registro do cemitério de Perus, enterrado como indigente. Havia apenas a informação de que seu corpo havia sido exumado em 1976, sem pistas de para onde teria sido levado. A própria administração do cemitério, então, admitiu que Molina poderia estar na vala comum. Por meio de um processo, a família conseguiu a abertura da vala, mas não havia condições de identificação. A ossada de Flávio só foi retirada da vala em 1990, e identificada em 2005, por meio de um exame de DNA.

“O mais doloroso de tudo isso foi a busca pelos restos mortais”, afirma Gilberto Molina. “Foi uma dificuldade muito grande para termos a certeza de que foi morto, descobrir onde ele estava sepultado e fazer a identificação de seus restos mortais”, pontua.

 

Perus hoje

Além de Molina, foram retirados da vala os militantes Frederico Eduardo Mayr, Dênis Casemiro, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria Lopes de Moraes. Estão à espera de identificação os corpos de Dimas Antônio Casemiro, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveira.

Filho de Dimas e sobrinho de Dênis, Fabiano César Casemiro aguarda o reconhecimento do seu pai, assim como já ocorreu com o tio. Dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Dimas foi morto em São Paulo em abril de 1971 e enterrado como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Além da expectativa pela identificação, depois de tantos anos, Fabiano espera que mais fatos da época venham à tona. “A história tem que ter o registro para que não aconteça de novo”, diz Fabiano.

Atualmente, os trabalhos de identificação dos restos mortais exumados nos cemitérios de Perus e Vila Formosa (que também foi usado para enterro de militantes em São Paulo) estão sendo realizados no Núcleo de Pesquisa em Identificação Humana para Mortos e Desaparecidos Políticos, do Instituto Nacional de Criminalística. O caso deverá ser acompanhado pela Comissão Nacional da Verdade, que já pediu informações a respeito do andamento das atividades.

 

Longe do fim

Muitos casos, porém, ainda estão bem longe de um desfecho, o que mostra que há muito o que avançar. A história de Hiroaki Torigoe é um exemplo. Torigoe era estudante de Medicina e militante do Molipo quando, em 1972, foi baleado durante uma emboscada preparada pela polícia, na rua Albuquerque Lins, em São Paulo. Em seguida, foi levado ao Doi-Codi. “Lá ele continuou sendo torturado, apesar de já ter levado os tiros”, recorda seu irmão, Shuniti Torigoe.

Como tantos outros, o corpo de Torigoe foi sepultado no cemitério de Perus como indigente. Quando a família localizou-o por meio do livro de registros, soube que seu corpo havia sido exumado em 1976. “Disseram que o corpo havia sido exumado e não se podia fazer nada. Não falaram quando foi nem para onde tinha sido levado. E nessa ocasião ainda existia repressão, não se podia fazer muita coisa”, relata o irmão.

Décadas depois, a família não tem ideia do que ocorreu com os restos mortais de Torigoe. Depois do início das identificações, nos anos 1990, chegaram a ser feitos algumas testes, mas o resultado foi negativo. O mais triste da demora, para Shuniti, é que seus pais faleceram sem saber onde Hiroaki foi enterrado. “Significava muito para eles”, diz.

 

Repúdio

A volta de Maluf com força aos noticiários, depois da aliança com Fernando Haddad, trouxe às famílias a decepção e a revolta de vê-lo ainda na vida pública.

“São esses absurdos que acontecem na política”, diz Gilberto Molina. Na minha opinião é uma pessoa [Maluf] que já deveria ter sido presa e execrada da vida pública e política há muito tempo”, afirma.

Para Shuniti Torigoe, o mais decepcionante foi a aliança de Maluf com o Partido dos Trabalhadores. “É um absurdo, um contrassenso. Ele participou da ditadura, e o Lula ter feito uma aliança com ele é uma decepção total”, lamenta.

“A gente não entende como é que as pessoas conseguiram, no Brasil, ficar tão alienadas em relação a esses fatos terríveis que aconteceram e não conseguem ver a gravidade que foi negar o enterro para as famílias”, destaca a procuradora Eugênia Gonzaga, responsável pela ação civil pública contra Maluf.

Durante duas semanas a reportagem procurou por Paulo Maluf, que não concedeu entrevista, e a justificativa, segundo sua assessoria de imprensa, foi o recesso parlamentar. Fernando Haddad também foi procurado mas, até o fechamento desta edição não houve retorno de sua assessoria de imprensa.

Fonte: Patrícia Benvenuti – Jornal Brasil de Fato

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